segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O caso Queiroz - As Relações Estado/FPF

Na sequência do castigo de suspensão por 6 meses aplicados pela ADOP que não concordando com a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da FPF no processo que ficará conhecido como “Caso Queiroz” avocou a si a avaliação dos factos, provocou, nas pessoas menos familiarizadas com a legislação, uma série de questões. Desde logo saber se “o Estado pode interferir num caso de foro desportivo”, mesmo que este tenha sido “julgado” noutra instância. O argumento primário será, naturalmente, pensar-se que a Federação, entidade colectiva de direito privado com Estatutos e Regulamentos próprios, possui “autonomia e autoridade” bastantes para impedir, digamos assim, intromissões do Estado. Puro engano. Basta vermos como é regulado o desporto em Portugal através da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto.

Um ponto de ordem: só vou reproduzir os artigos que julgo necessários para uma boa interpretação desta Lei, no que concerne, ao caso em apreço (os sublinhados e bolds são meus).

Logo no Artigo 6º Promoção da actividade física

1— Incumbe ao Estado, às Regiões Autónomas e às autarquias locais, a promoção e a generalização da actividade física, enquanto instrumento essencial para a melhoria da condição… etc.etc.

A seguir no Artigo 7º Desenvolvimento do desporto

1— Incumbe à Administração Pública na área do desporto apoiar e desenvolver a prática desportiva regular e de alto rendimento, através da disponibilização de meios técnicos, humanos e financeiros, incentivar as actividades de formação dos agentes desportivos e exercer funções de fiscalização, nos termos da lei.

2— Junto do membro do Governo responsável pela área do desporto funciona, de forma permanente, o Conselho Nacional do Desporto, composto por representantes da Administração Pública e do movimento associativo desportivo.

3— No âmbito da administração central do Estado, funciona a Autoridade Antidopagem de Portugal, com funções no controlo e combate à dopagem no desporto.

4— As competências, composição e funcionamento dos órgãos referidos nos números anteriores são definidos na lei.

Salto agora para as relações do Estado com outros Países:


Artigo 11º Cooperação internacional

1— No sentido de incrementar a cooperação na área do desporto, o Estado assegura a plena participação portuguesa nas instâncias desportivas europeias e internacionais, designadamente as instituições da União Europeia, o conselho da Europa, a UNESCO e o Conselho Ibero-americano do Desporto.

2— O Estado estabelece programas de cooperação… etc etc.

Mais adiante… qual é o conceito de Federação:

Artigo 14º Conceito de federação desportiva

As federações desportivas são, para efeitos da presente lei, pessoas colectivas constituídas sob a forma de associação sem fins lucrativos que, englobando clubes ou sociedades desportivas, associações de âmbito territorial, ligas profissionais, se as houver, praticantes, técnicos, juízes e árbitros, e demais entidades que promovam, pratiquem ou contribuam para o desenvolvimento da respectiva modalidade, preencham, cumulativamente, os seguintes requisitos:

a) Se proponham, nos termos dos respectivos estatutos, prosseguir, entre outros, os seguintes objectivos gerais:

1) Promover, regulamentar e dirigir, a nível nacional, a prática de uma modalidade desportiva ou de um conjunto de modalidades afins ou associadas;

2) Representar perante a Administração Pública os interesses dos seus filiados;

3) Representar a sua modalidade desportiva, ou conjunto de modalidades afins ou associadas, junto das organizações desportivas internacionais, bem como assegurar a participação competitiva das selecções nacionais;

b) Obtenham o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva.



No que respeita à justiça desportiva:

Artigo 18º Justiça desportiva

1— Os litígios emergentes dos actos e omissões dos órgãos das federações desportivas e das ligas profissionais, no âmbito do exercício dos poderes públicos, estão sujeitos às normas do contencioso administrativo, etc, etc

(…)

4— Para efeitos do disposto no número anterior (nota: as estritamente desportivas, relacionadas com as Leis do jogo, etc), as decisões e deliberações disciplinares relativas a infracções à ética desportiva, no âmbito da violência, da dopagem, da corrupção, do racismo e da xenofobia não são matérias estritamente desportivas (logo, acrescento eu, são do foro administrativo).

O que é a utilidade pública desportiva?

Artigo 19º Estatuto de utilidade pública desportiva

1— O estatuto de utilidade pública desportiva confere a uma federação desportiva a competência para o exercício, em exclusivo, por modalidade ou conjunto de modalidades, de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública, bem como a titularidade dos direitos e poderes especialmente previstos na lei.

2— Têm natureza pública os poderes das federações desportivas exercidos no âmbito da regulamentação e disciplina da respectiva modalidade que, para tanto, lhe sejam conferidos por lei.

3— A federação desportiva à qual é conferido o estatuto mencionado no nº 1 fica obrigada, nomeadamente, a cumprir os objectivos de desenvolvimento e generalização da prática desportiva, a garantir a representatividade e o funcionamento democrático internos, em especial através da limitação de mandatos, … etc, etc

Comentários a este artigo 19º

1 – Existem outras vantagens, que não vêm aqui para o caso, nomeadamente fiscais.

2 – A FPF, tendo natureza pública, está dependente do órgão de tutela, neste caso a Secretaria de Estado do Desporto que, por sua vez, depende do Conselho Superior de Desporto.

3 – Segundo os Estatutos da FPF os mandatos eleitorais têm a duração de 4 anos, coincidindo com o ciclo do Campeonato do Mundo que terminou no mês de Junho passado. Logo, as eleições que já estão atrasadas (provavelmente o senhor Madaíl estava à espera de ver se ganhávamos a realização do Mundial) devem realizar-se no mais curto prazo possível.

Comentário final

1 - Não existe para mim qualquer dúvida sobre a legalidade e tramitação do processo que CQ moveu à ADOP. Carlos Queiroz esteve reunido no dia 15 de Dezembro para uma tentativa de conciliação sobre o montante da indemnização a que obviamente vai ter direito, mas prefere aguardar pelo resultado do recurso dirigido ao TAS.

Não faço juízos de valores sobre CQ nem sobre Gilberto Madaíl, as suas qualificações, procedimentos e/ou situação futura. Indemnizações, e reposição do bom nome, são questões pessoais.

2– A FPF enferma de várias ilegalidades formais a saber:

a) A inadequação dos seus Estatutos ao NRJFD que já motivou a perda da Utilidade Pública

b) A não realização de eleições após o termo do mandato (30 de Junho 2010)

c) A impossibilidade de delegar na LPFP as competências da Disciplina e da Arbitragem.

NOTA IMPORTANTE – Para mim não é líquido que os “novos Estatutos” sejam constitucionais.

Hipóteses para a FPF sair desta série de trapalhadas:

1 - Perda de quorum por demissão dos elementos que compõem os vários órgãos, o que já aconteceu com o Conselho de Justiça que foi rapidamente substituído.

2 - Destituição de todos os Corpos Sociais em Assembleia-geral, convocada expressamente para o efeito.

3 – Eleições. Inicialmente marcadas para 15 de Janeiro, foram adiadas para o dia 5 de Fevereiro, pelo que, o actual mandato continua transitório até essa situação acontecer.

Foto montagens de JOSÉ LIMA

Um Bom Ano

4 comentários:

f tavares disse...

Grande e excelente artigo
Este artigo será para guardar pois de uma maneira sucinta explica o que a grande maioria dos desportistas já ouviu falar mas não tem conhecimento dos factos.
Parabéns Lima pela " explicação" aqui apresentada sobre a matéria
ft

Pedro Silva disse...

Caro Lima, o seu trabalho está muito bom (muito resumido para Jurista ler é um facto, mas não deixa de estar bom).

O problema é que na FPF, tal como nos Partidos, os Regulamentos são Letra Morta perante os interesses e lobbys de quem manda e tens bons Padrinhos para poder garantir um bom futuro ou uma boa reforma.

Existe uma pergunta que NENHUM Órgão da nossa Comunicação Social que tanto se interessou em destruir o Carlos Queiroz e passar um paninho quente á asneira grossa que Madaíl e os seus Acólitos fizeram. A questão é esta:

- Que está a fazer o Principal Protagonista e enorme responsável do Caso Saltillo nos órgãos da FPF? Como é que esta personagem de nome Amândio Carvalho obteve a nomeação para a direcção do Futebol das Selecções depois da triste figura que fez no México 86?

Cá está…. O Queiroz é que é Burro, o Paulo Bento é o Milagreiro e nós Portugueses somos mesmo um Povo de MUITOS brandos costumes…

Cumprimentos e uma boa passagem de Ano para si e para os seus.

JOSE LIMA disse...

Meu caro The Blue One
Agradeço as suas amáveis palavras mas, de facto, não consigo “encaixar” no espaço disponível dum blogue os argumentos suficientes para que os nossos amigos leitores consigam avaliar esta questão.
Parti, como é óbvio, do articulado da Lei nº 5/2007 de 16 de Janeiro http://www.idesporto.pt/ficheiros/file/Lei_5_2007.pdf que, por sua vez, tinha substituído a anterior Lei nº 30/2004 de 21 de Julho http://www.idesporto.pt/DATA/DOCS/LEGISLACAO/doc05_031.pdf
No fundo, o que eu queria dizer em traços gerais era que, efectivamente, é do Estado que parte a iniciativa legislativa e posterior gestão do Desporto. Por fastidioso escuso-me de referir todos os Organismos e Institutos que sequencialmente “dirigem” o nosso organigrama desportivo.
A única questão verdadeiramente nova é que algumas pessoas julgam que, pelo facto das Associações e Clubes serem “entidades privadas” com “regulamentos e estatutos próprios”, podem sobrepor-se à legislação. Isto é um facto. Outro, é o de eu achar que o Estado, nesta questão dos Estatutos das SAD’s, via FPF, está de facto, a ingerir no livre Associativismo, ocorrendo situações limite à beira da inconstitucionalidade, nomeadamente no que diz respeito às percentagens detidas pelas várias entidades intervenientes no fenómeno desportivo. Não me entra na cabeça que, por exemplo, os médicos ou os árbitros, tenham a mesma percentagem de votos do que uma Associação que representa centenas de milhares de praticantes.
Peço desculpa do tempo que lhe tomei mas, é um assunto interessante para ser debatido desapaixonadamente, espero ainda voltar a ele.
Abraço

Pedro Silva disse...

Caro Lima eu é que agradeço os excelentes trabalhos que o meu caro amigo tem feito para o Mística.

Eu percebi onde queria chegar, mas esta questão dos Estatutos da FPF, da ingerência do Estado no Desporto e tudo o resto que mexa com o Mundo da nossa Bola é muito "estranho".

Só que neste Mundo da Bola existem coisas estranhas e os Regulamentos (os que existem e os que vão existir) são geralmente Letra Morta e apenas existem para enfeitar.

Quem manda são os interesses das Associações e quem está no meio delas a sacar o seu e a aproveitar-se de algo que é de todos.

Digo isto desapaixonadamente e sem rancor. Não fosse este o Retrato do nosso Portugal que parece perdido e sem rumo onde cada um olha e faz tudo por si.

Grande abraço