quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A Culpa é sempre dos outros

Um amigo meu que não tinha onde cair morto resolveu comprar uma casa a prestações. Passados alguns meses, deixou de cumprir o acordado, ficando a dever uma parte do empréstimo que ainda faltava liquidar. Até aqui tudo normal, só que o meu amigo diz que não deve nada porque, quando fez o contrato de compra, considerou o negócio liquidado, além de que, “o Banco é que tem a culpa”, não lhe devia ter emprestado o dinheiro! Claro que o exemplo não é verdadeiro e lembrei-me de recriar esta situação quando ouvi o presidente da Liga dizer o mesmo acerca das dívidas do Totonegócio.

Mas vamos lá puxar pela memória, ver como o assunto se passou, e analisar as diversas vertentes do problema. As reais, as jurídicas e as “da treta”.

No longínquo ano de 1985 o volume de dívidas fiscais dos clubes atingia, feita a conversão para euros, a linda quantia de 50 milhões. Era então Primeiro-ministro, Cavaco Silva, que deixou o caso a marinar até ao final do seu mandato.

Em 1996 António Guterres tenta resolver o assunto e leva ao hemiciclo uma proposta para solucionar o problema, que grosso modo constava da retenção das verbas atribuídas aos clubes pelo Totobola afim de abater as dívidas ao Fisco e à Segurança Social. Caiu o Carmo e a Trindade! “Isto é um perdão fiscal encapotado” vociferavam os amantes da verdade desportiva de então. Pode lá ser!

Poder... pode, digo eu, como vamos ver já a seguir. Augusto Mateus fez publicar o Decreto-Lei 124/96 que viria a ficar conhecido como Plano Mateus e permitia que os contribuintes com dívidas Ficais ou à Segurança Social regularizassem a sua situação perante o Estado em 150 suaves prestações (entre 1 de Julho de 1998 e 31 de Dezembro de 2010), e deu o pontapé de saída para a resolução do problema. Em Março de 1998, os clubes, desde que não tivessem dívidas ao Estado entre 1996 e 1998 puderam aderir à iniciativa. Foi então nomeada pelo Governo uma Comissão Técnica cuja missão era avaliar, por um lado, o valor das dívidas e, pelo outro, quais as receitas a receber do Totobola que os clubes davam em dação de pagamento. (O pagamento das dívidas fiscais efectua-se, regra geral, em numerário. O Decreto-Lei n.º 52/84, de 15 de Fevereiro, admitiu, no entanto, a dação em pagamento como causa da extinção da obrigação tributária, embora a título excepcional).

A PGR, chamada a pronunciar-se sobre o despacho 7/98 de 4 de Março, emite um parecer sobre o acordo, contendo diversos considerandos, dos quais se salientam dois:

«Considerando que, em 31 de Janeiro de 1997, a Liga e a Federação aderiram como gestores de negócios dos clubes das 1ª, 2ª divisão de honra, 2ª divisão B e 3ª divisão, ao plano de regularização de dívidas ao fisco constante do D.L. nº 124/96, de 10 de Agosto”…

“Considerando que a Liga e a Federação ofereceram como dação em pagamento para liquidação do valor das dívidas ao fisco existentes até 31 de Julho de 1996, as receitas futuras das apostas mútuas desportivas a que os clubes tenham direito” etc.

Chegados ao que poderia ser o epílogo desta novela com os clubes a “viverem felizes para todo o sempre”, algo transformou a habitual paz podre em que se movem os negócios do pontapé-na-bola. Como o “encontro de contas” entre os clubes e o fisco, estava prejudicado pelo abrandamento das receitas do Totobola, o incumprimento acentuava-se, tendo os “subscritores” alegado que os cálculos estavam mal feitos e não se concretizara a promessa da Santa Casa de criar novos jogos que aumentassem as receitas, antes, aparecia um tal Euromilhões cujas receitas ficavam de fora do acordo.

Em 2004 (lembram-se das banhadas que levámos da Grécia?) Bagão Félix na qualidade de Ministro das Finanças de Durão Barroso, resolve dar ordem à DGCI para notificar as “entidades”, segundo ele, responsáveis pelo não cumprimento das metas acordadas. Eram elas, como se percebe, a FPF e a Liga que sacudiram a água do capote com o argumento de terem somente actuado na qualidade de “gestores de negócios dos clubes”. Bagão Félix, em vez de se entreter a analisar o Passivo do seu Clube que com a gestão do senhor Vieira já tinha quase duplicado, manda penhorar a antiga sede da FPF e colocá-la em hasta pública por 1,4M€, e ninguém lhe pega. Assim à distância faz-me lembrar o outro parvalhão que aceitou penhorar uma retrete!

Recentemente a FPF e a Liga são citadas pelas Finanças para pagarem solidariamente com os clubes a segunda parte da execução do Totonegócio. Gilberto Madaíl volta a argumentar que o negócio tinha ficado saldado com a dação em pagamento, e ainda reforça a posição com o recurso ao artigo 37º do Código de Procedimento e Processo Tributário, “por terem solicitado elementos em falta que nunca lhes foram aclarados”. Este artigo no seu número 2 refere: “se o interessado usar da faculdade concedida no número anterior, o prazo para a reclamação, recurso, impugnação ou outro meio judicial conta-se a partir da notificação ou da entrega da certidão que tenha sido requerida”. A FPF e a Liga dão por adquirido que o prazo de contagem dos prazos está suspenso pois a falta da certidão solicitada “tem efeitos suspensivos sobre a execução a que respeita”.

Trocando por miúdos:

1 – O Tribunal notifica; 2 - O requerido não concorda, alegando erros e recorre; 3 – O Tribunal não responde; 4 – Os prazos ficam suspensos até serem prestados os esclarecimentos ou certidões. Mas o tiro pode sair pela culatra. Num caso semelhante em que foi utilizado este “expediente” o Ministério Público entendeu que a “falta de resposta” não é um “acto em matéria tributária” suposto ao art. 37º, mas antes um “acto processual”, o que indefere o recurso, que é como quem diz: “não é isto que está em causa, o recorrente apenas alega um erro administrativo”.

Resumindo e concluindo: todos têm razão, até prova em contrário. Os clubes porque acreditaram que aquilo que iam receber do Totobola era suficiente. A Santa Casa porque o Euromilhões e jogo on-line fizeram cair as receitas. O Fisco porque, no fundo, é quem está a arder. A FPF e a Liga porque não são mais do que “representantes” dos clubes.

No meu ponto de vista, a solução previsível deverá ser: Apurar qual o montante exacto das dívidas, e negociar um plano de pagamento exequível. A aprovação de legislação para viabilizar as apostas on-line é um meio que pode aumentar as receitas a receber pelos clubes. E pagar! Porque além de tudo, os clubes são como o meu amigo do 1º parágrafo: a culpa é sempre dos outros! Assim haja vontade do senhor Relvas e do compincha Santana. O primeiro porque é o responsável da tutela, o segundo porque pode colocar as cortinas novas do seu gabinete da Santa Casa em melhores dias.

Até para a semana

Nota – os sublinhados são meus

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